Lívia, parabéns pelo texto e obrigada por essas palavras tão esclarecedoras e provocativas. Eu compartilho dessa idéia que você discute e foi muito importante pra mim encontrar uma semelhança de pensamentos sobre nossa prática profissional. A leitura dos seus textos estão me servindo de inspiração e estímulo. Estarei acompanhando por aqui. E adorei as referências. Já vou procurar o texto que você cita.
Continue nos presenteando e contribuindo com fortalecimento e evolução da nossa profissão. Abraço
Por: Lívia de Paula
Olá colega psi, feliz ano novo! 2020 chega desafiador, assim como foi 2019, principalmente para nós, psicólogas e psicólogos defensores dos direitos humanos e de uma ciência e profissão comprometida ética e socialmente. Mas, vamos lá, acolher o novo ano e os desafios que estão por vir!
Quem já me acompanha por aqui sabe que, no mês passado, iniciei a apresentação das categorias temáticas que compõem o Cá entre nós, Psi! Se você está chegando neste espaço agora, clique aqui e dê uma olhadinha no texto de dezembro. Ele tratou da Psicologia no SUAS. Para este mês, irei apresentar a Categoria Psicologia e Prevenção de Violências. O título original pensado para esta Categoria seria Psicologia, Prevenção e Enfrentamento às Violências. Entretanto, o nome ficou muito extenso para compor o menu do blog e acabei optando por suprimir a palavra enfrentamento. Porém, a proposta para esta categoria é de fato tratar de temas relacionados às Violências, seja no que concerne à prevenção quanto ao enfrentamento, e ainda através de outros assuntos transversais à temática.
Como fiz com a Categoria anterior, quero contar um pouquinho como a prevenção e o enfrentamento às violências se inserem no meus interesses de estudo e na minha vida profissional. Considero esta contextualização importante por acreditar que o que dizemos e defendemos sempre está atrelado aquilo que experimentamos como pessoa e profissional. Então senta que lá vem história…
Assim que me formei, fui contratada para atuar como psicóloga em minha terra natal, dando suporte ao Conselho Tutelar dos Direitos da Criança e Adolescente. Começa aí meu contato com situações de violação de direitos. Como não é comum e nem recomendado – fui descobrir isso depois – que o referido Conselho conte com equipe técnica em seu quadro, me vi inserida em uma atuação desafiadora e sem referências ou parâmetros para o planejamento e execução do trabalho. No entanto, considero que esta foi uma experiência que me preparou para os desafios que enfrentei depois, quando de fato mergulhei no acompanhamento direto de famílias que experienciaram situações de violência. Acompanhar a rotina dos conselheiros tutelares, orientá-los, apoiá-los em suas dificuldades, ofertar escuta a algumas crianças e adolescentes e suas famílias, atuar junto ao colegiado na tentativa de contribuir para relações éticas entre os conselheiros, tudo isso, trouxe aquela psicóloga recém formada uma bagagem de conhecimento e experiência que direcionou muito minha trajetória posterior.
Após esta experiência no Conselho Tutelar, saí da minha cidade natal e assumi o cargo de psicóloga efetiva na prefeitura de outro município do centro-oeste mineiro, no qual atuo desde 2006. Coincidência ou não, fui convocada para atuar também junto às questões de violação de direitos contra crianças e adolescentes, no extinto Serviço Sentinela e posteriormente no CREAS. Esta parte da história já contei no texto do mês passado. Se te interessa, confere lá! E assim, embora tenha mudado de trabalho, continuei no campo da prevenção e enfrentamento à violência, especialmente à violência contra crianças e adolescentes. E nele permaneço também atualmente, atuando na Equipe Técnica dos Serviços de Acolhimento Institucional de Crianças e Adolescentes deste mesmo município.
Quando reflito sobre a minha trajetória, observo o entrelaçar da vida. Em 2016, escrevi um texto para o Blog Psicologia no SUAS, da querida amiga Rozana Fonseca, intitulado “Você vai trabalhar no SUAS”: Considerações sobre uma não escolha, no qual eu refletia um pouco sobre ter sido escolhida pelo SUAS. E vejo que com o enfrentamento à violência contra crianças e adolescentes não foi diferente. Este tema me escolheu. E de volta eu o escolhi. Escolhi porque é meu principal campo de pesquisas, de busca de conhecimento, de construções. Escolhi porque é o tema pelo qual meus olhos brilham. É de fato a minha praia. E você, já parou para pensar sobre isso? Por qual – ou quais – assunto seus olhos brilham?
Foi a partir dos meus estudos sobre violência contra crianças e adolescentes, que a temática prevenção e enfrentamento às violências surgiu como um dos meus interesses e se tornou uma categoria para organizar os textos aqui do Cá entre nós, Psi! Tal temática é transversal, estando presente no trabalho da Psicologia nos mais diversos campos de atuação e por isso considero essencial propor reflexões e compartilhar conhecimentos relacionados a ela. Embora meu foco maior seja nesta temática atrelada a crianças e adolescentes, a proposta é compartilhar no blog textos que possam pensar as questões concernentes às mais diversas frentes de prevenção e enfrentamento às violências.
Para começar a pensar neste assunto, quero compartilhar com vocês hoje minhas ideias sobre algo que há muito tempo vem me provocando e me movimentando enquanto profissional atuante neste campo. No dia a dia, quando conto para as pessoas minha trajetória, como contei até aqui neste texto, uma das primeiras perguntas que me fazem é: “ah, então você atende as crianças que são vítimas? É importante né, porque elas devem ficar muito traumatizadas.” E embora essa seja uma pergunta típica de pessoas leigas, não é incomum que psicólogas (os) e colegas de outras categorias também iniciem um diálogo comigo permeado por esta ideia. Psicologia e Atuação no Campo das Violências como sinônimo de atendimento às vítimas, como sinônimo de recuperação, de tratamento. Já avançamos bastante, mas minha experiência me conta que esta é uma ideia que ainda permeia o imaginário de pessoas leigas, profissionais psi e profissionais de outras categorias. No SUAS, não é incomum bos depararmos com o entendimento equivocado de que a (o) assistente social vai cuidar da família, enquanto isso a (o) psicóloga (o) atende a vítima.
Sendo cotidianamente provocada por isso, resolvi inaugurar a categoria Psicologia e Prevenção às Violências fazendo um convite para pensarmos sobre a relação entre Psicologia e Violências de um modo um pouco mais amplo. Há um bom tempo a Psicologia já superou este lugar de quem cuida dos “traumas”, de quem “trata”. Como apontei no texto anterior, estamos no território, temos feito a travessia do um a um para o coletivo. E no tema violência não é diferente. Mudamos nossa atuação. Além do atendimento às vítimas, trabalhamos em campanhas de sensibilização e prevenção, em planejamento de ações e em outras tantas atividades relacionadas ao assunto. Mas, quero deixar aqui um questionamento: nesta atuação, qual tem sido nossa concepção sobre a violência? Compreendemo-la como um fenômeno individual? Trabalhamos na prevenção e enfrentamento da situação pontual de cada família ou indivíduo? Ou pensamos sobre a violência como um elemento que permeia nossas relações sociais? Chamamos a atenção para o necessário trabalho de prevenção à violência que aborde as relações e os aspectos sobre o tema no âmbito coletivo?
Em 2018, o Conselho Regional de Psicologia de Minas Gerais – CRP-MG produziu, em parceria com a Secretaria de Estado de Trabalho e Desenvolvimento Social – SEDESE, um Caderno de Orientações a Trabalhadoras e Trabalhadores do SUAS para ações contra o preconceito, o qual eu tive o privilégio de ajudar a construir, que, a meu ver, traz pontos importantíssimos para auxiliar a conversa que estou propondo aqui. O material vai trabalhar a noção de desigualdade social e de como esta desigualdade produz preconceitos e exclusões. Preconceitos e exclusões que relacionam-se também direta ou indiretamente às violências. Falando sobre o trabalho do SUAS, é imprescindível que a (o) psicóloga (o) saiba que: “…a proteção socioassistencial se interpõe com as concepções da meritocracia, do machismo, do sexismo, do racismo e de tantas outras manifestações autoritárias que promovem violências e concebem as situações de desproteção social como culpa de quem as vive.” (CONSELHO REGIONAL DE PSICOLOGIA – CRP-MG; MINAS GERAIS, 2018, p. 11, grifos nossos)
Este é o ponto que considero primordial para a discussão que estamos tecendo aqui. A (o) profissional psi, seja no SUAS ou em outros espaços de atuação, precisa deslocar-se do lugar ao qual comumente estamos acostumadas (os). O lugar de centrar o cuidado naquele que é vítima da violência. Este lugar, embora muito importante, traz em seu bojo o risco de individualização das situações de violência e da culpabilização individual das pessoas pela vivência de situações violadoras de seus direitos. É primordial que a (o) psicóloga (o) amplie seu olhar e seu trabalho, atendendo as famílias e indivíduos sim, mas sem deixar de se movimentar no sentido de compreender as concepções sociais promotoras de violências. Este, a meu ver, é um dos principais compromissos que a (o) profissional que atue com prevenção e enfrentamento à violências deve assumir. Você perceberá que, de forma direta ou não, esta defesa estará presente em todos os textos que tratarem desse assunto aqui no Cá entre nós, Psi! Isto porque não acredito em um trabalho junto a esta temática fechado no sujeito vítima, sem considerar os aspectos sociais que dialogam com a situação que ele vivenciou e a qual nos chega para acolhimento.
Contribuindo também com esta visão, podemos citar aqui o trabalho da autora Bader Sawaia. Em um texto de 2009, intitulado Psicologia e Desigualdade Social: uma reflexão sobre liberdade e transformação social, o qual recomendo fortemente para leitura, a autora defende a relação, segundo ela inquestionável, entre subjetividade, desigualdade e transformação social. Vai desenvolvendo essa ideia a partir da polêmica que esta relação envolve e trazendo as ideias de teóricos como Espinoza e Vigotski para a construção de suas considerações sobre o tema. Para ela, a desigualdade social é uma ameaça contínua à existência e traz inúmeras formas de humilhação e limitações à experiência, à mobilidade e à vontade. (SAWAIA, 2009) Na minha opinião, este texto é imprescindível para as (os) psicólogas (os) que buscam compreender a relação entre Psicologia, Desigualdade Social e Enfrentamento às Violências.
Continuando com Sawaia, não poderia deixar de citar aqui um conceito que ela traz em um dos seus textos, já bastante conhecido: o sofrimento ético-político.
Em síntese, o sofrimento ético-político abrange as múltiplas afecções do corpo e da alma que mutilam a vida de diferentes formas. Qualifica-se pela maneira como sou tratada e trato o outro na intersubjetividade, face a face ou anônima, cuja dinâmica, conteúdo e qualidade são determinados pela organização social. Portanto, o sofrimento ético-político retrata a vivência cotidiana das questões sociais dominantes em cada época histórica, especialmente a dor que surge da situação social de ser tratado como inferior, subalterno, sem valor, apêndice inútil da sociedade. (SAWAIA, 2014, p. 106)
A partir deste conceito, é possível entender o que defendi neste texto em relação ao deslocamento necessário às (os) psicólogas (os) do lugar comumente reservado a nós no que refere-se à prevenção e enfrentamento das violências. É preciso entender a violência de forma ampla e contextualizada, conhecendo as concepções que contribuem para sua perpetuação e as formas pelas quais tais concepções permeiam o convívio social. Estar atenta (o) às relações existentes entre subjetividade, cidadania, violência e desigualdade mostra-se essencial neste desafio colocado à nossa profissão. Este texto é o pontapé para outros textos que irão pensar a atuação da (o) psicóloga (o) frente à situações de violência tendo como parâmetro as reflexões sobre os aspectos sociais entrelaçados ao tema. Se isso te inquieta também, siga acompanhando este espaço.
Para ilustrar, deixo aqui a sugestão de um filme que, embora não seja novo, assisti recentemente e contribuiu para as reflexões trazidas neste texto. Que horas ela volta? é um filme brasileiro de 2015, que tem no elenco Regina Casé no papel de uma empregada doméstica nordestina que muda-se para São Paulo para trabalhar, deixando a filha em Recife. Muitos anos depois, a filha, já adulta, vai morar com a mãe em SP para prestar vestibular. A chegada da filha provoca incômodos e questionamentos no modo, já instituído, de vida da sua mãe. É um filme primoroso para se pensar as relações sociais, como elas estão organizadas em nosso país e quais os impactos disso na subjetividade das pessoas. Vale muito a pena!
Apresentada mais uma categoria, deixo aqui o meu convite de sempre para uma “prosa”. Cá entre nós, divide comigo suas percepções e experiências sobre este tema? Aguardo seus comentários! Até a próxima!
Referências Bibliográficas:
ARAÚJO, D. C.; LOPES, P. Que horas ela volta? Percepções do discurso fílmico por blogueiras feministas do Brasil. In: Ex aequo, nº36, 2017, p. 203-219.
CONSELHO REGIONAL DE PSICOLOGIA – CRP-MG; MINAS GERAIS (Estado). Secretaria de Estado de Trabalho e Desenvolvimento Social – SEDESE. Caderno de orientações a trabalhadoras e trabalhadores do SUAS para ações contra o preconceito. Belo Horizonte, 2018.
SAWAIA, B. B. O sofrimento ético-político como categoria de análise da dialética exclusão/inclusão. In: SAWAIA, B. B. (Org.). As artimanhas da exclusão: análise psicossocial e ética da desigualdade social. 14. ed. Petrópolis: Vozes, 2014.
SAWAIA, B. B. Psicologia e Desigualdade Social: uma reflexão sobre liberdade e transformação social. In: Psicologia e Sociedade, 21 (3), 2009, p. 364-372.
Angélica Martins
Em 13.01.2020