Covid-19 e o trabalho no SUAS: medo, possibilidade e luta

9 junho 2020

Olá pessoal, tudo bem com vocês?

O texto de hoje é um presente. Foi construído em parceria com a psicóloga Jéssica Isabel. Eu e Jéssica nos conhecemos há alguns anos, através da Comissão de Orientação em Psicologia e Política de Assistência Social do CRPMG. Neste percurso, nos tornamos amigas e descobrimos tantas afinidades que nos apelidamos de SIS. Então este texto é um presente, que sela uma irmandade. Espero que gostem!

 

Covid-19 e o trabalho no SUAS: medo, possibilidade e luta

Ilustração: Geralda Guevara

 Por: Lívia de Paula e Jéssica Isabel

Temos lido tantas notícias, tantos documentos, tantas recomendações, mas ainda não encontramos algum texto que valide nossos sentimentos. Convidamos você, nesse momento a parar. RESPIRE! Vamos falar da questão prática, do dia a dia e da realidade. Vamos pedir licença às (aos) nossas (nossos) companheiras (os) para descrever o seu dia a dia e exemplificar do que estamos falando.

Atuamos dentro da política de assistência social e em um aglomerado (achamos mais carinhoso dizer favela). Para chegar ao nosso local de trabalho, pegamos dois ônibus, no total 4 por dia. Convivemos durante o dia com um grupo para o qual a notícia do vírus ainda não fez sentido, a não ser do ponto de vista concreto. A casa está cheia a maior parte do tempo, por que os meninos não tem aula e agora a fome aumentou, por que a alimentação que tinha na escola foi cessada e não se pode esquecer que o filho mais velho tem ficado em casa por que o trabalho o dispensou. É essa a população que chega e que quer um contato! Voltamos para casa depois de mediar todo o contato físico que não pudemos ter com aquela população e chegamos em casa carregadas de “vírus potencial”. Temos em casa a coleção completa do chamado grupo de risco e agora precisamos continuar mediando os conflitos internos.
Todas as informações nos apontam para o cuidado que precisamos ter, nos colocam para ficar em alerta, preparadas para qualquer movimentação estranha e para cuidar do outro. Não podemos esquecer nesse momento de Renato Caminha (2014), dizendo sobre a função do medo, que é preservar a vida, nos colocar em estado de alerta. Então, paremos de negar que esse sentimento existe. Vamos falar do que podemos fazer para lidar com ele. É desse ponto que gostaríamos de começar!

A atuação no SUAS, em contextos normais, já é, a nosso ver, bastante desafiadora. O reconhecimento da Assistência Social como uma política pública de direito ainda não atingiu toda a sociedade. Muitos desconhecem o que é o SUAS, como ele funciona e quais são os impactos deste trabalho na sociedade brasileira. E de repente, no intercurso desta luta por reconhecimento e enfrentamento do desmonte que a política vinha sofrendo recentemente, vemos surgir o coronavírus. Inicia-se então uma discussão no âmbito de todas as políticas públicas e especialmente do SUAS. Começamos a nos perguntar: é essencial o nosso trabalho? Não é? Nossos equipamentos permanecerão abertos? Fecharão? Como executar o trabalho dito essencial? Essencial para quem?

Algumas destas questões já foram ou estão sendo respondidas. Mas junto a isso, algo invisibilizado acontece. Seguimos com medo. O coronavírus não diz respeito apenas aos nossos usuários. Ele nos diz respeito. Entretanto, dizer que estamos com medo pode gerar julgamentos. E por medo dos julgamentos, nos omitimos sobre os outros medos que nos cercam neste momento. E seguimos. Trabalhando com medo, sem saber o que está por vir. Tentando apoiar os usuários e clamando por apoio para nós. Equipamentos de Proteção Individual não chegaram até muitos de nós. Nossas famílias permanecem precisando do nosso cuidado. E nossos usuários também. Nos sentimos divididas (os), angustiadas (os), amedrontadas (os).

Precisamos aceitar que isto existe e é legítimo. Validar nossos sentimentos, nossas angústias, nosso desconforto. Nos situar. No mundo, neste novo contexto, no nosso papel neste cenário, do ponto de vista pessoal e profissional. Por isto, pense aí: você tem aceitado o seu medo?Reconhecer,aceitar e racionalizar o medo é um primeiro passo para podermos lidar com ele. Mas o que chamamos de racionalizar o medo?

Sabe aquele momento em que a luz do teatro inicialmente foca em um ponto, e a medida que o som se amplifica essa luz acompanha? Geralmente, quando a luz aumenta a tendência é enxergarmos com maior nitidez, ampliamos o olhar e conseguimos vislumbrar a mensagem, o gesto, a persona, o concreto. Quando falamos em COVID-19, dizemos de muitas possibilidades e de algumas certezas como o que fazer para diminuir a possibilidade de contágio. Então, racionalizar é ampliar o olhar.

Ampliando o olhar, podemos ver que temos nas mãos a possibilidade de utilizar o conhecimento a que temos acesso para contribuir na proteção daqueles que atendemos, a quem, na grande maioria das vezes, falta o acesso a tal conhecimento. Não é isso que tentamos fazer a todo momento no SUAS? Garantir direito a informação de várias ordens, apoiados nas seguranças inafiançáveis (Segurança de acolhida, segurança de sobrevivência, segurança de autonomia, segurança de convivência), mesmo que passe essa conexão despercebida em alguns momentos?

Ampliar o olhar é perceber que este trabalho pode ser muito potente. A informação é uma ferramenta fundamental e esse é um dos aspectos que torna nossa atuação essencial neste contexto. O cenário não é o ideal, mas se a nossa defesa é por direitos, e esta defesa se faz ainda mais urgente neste cenário, por que não considerarmos a possibilidade de reinvenção das nossas práticas? Se não temos o ideal, quais as formas possíveis de proteção? Para o público que atendemos e para a nossa própria proteção? Quem melhor que nós, técnicos, para apoiar as famílias? De modo intersetorial, aliados à política de saúde, podemos sim contribuir para a prevenção e proteção frente ao Covid-19.

Sabemos que a todos os trabalhadores da saúde, o juramento à saúde os motiva a estar na linha de frente, ainda que com os riscos. E nós? Qual nosso juramento com nosso público? É primordial lembrar que nunca deixamos de estar na linha de frente e, mesmo com medo, colocando nossa vida em risco, quantas vezes enfrentamos brigas judiciais, por querer garantir proteção; quantas vezes não acolhemos e mediamos conflitos na comunidade mesmo com ameaça de morte; quantas vezes não preparamos por horas uma roda de conversa para garantir a participação de nossos usuários?

Somos essenciais sim! Nosso juramento perpassa pela garantia dos direitos daqueles que muitas vezes não conseguem prover seu mínimo necessário para a existência, promovemos saúde de forma ampliada, garantimos acolhida segura, apoio quanto às questões de renda, informação e fazemos um trabalho que infelizmente os números não conseguem quantificar. Temos que ocupar esse lugar agora, pois as vidas importam e o SUAS é campo de resistência e luta, do qual nunca deixamos de estar na linha de frente.

Que a gente assuma nosso medo, sentimento humano que nos acompanha em vários momentos da vida. Que não tenhamos vergonha de sentir medo. Que dialoguemos sobre ele, peçamos ajuda, apoio. Que tenhamos as gestões como parceiras em prol da nossa segurança e saúde. Que o medo não nos paralise. Que a gente consiga se mobilizar, apesar do medo. Que lutemos pela não invisibilidade do SUAS neste momento. Que estejamos lá para mostrar que o SUAS é sim essencial. Que continue ecoando que, em tempos de pandemia, segue a nossa defesa de que o SUAS é meu, o SUAS é seu, o SUAS é de QUEM TEM DIREITO!

 

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:

CAMINHA, Renato M. Educar as bases de uma educação socioemocional – um guia para pais, educadores e terapeutas. Novo Hamburgo: Sinopsys, 2014.

 

Imagem: arquivo pessoal da colaboradora

Sobre Jéssica Isabel:

Jéssica Isabel é psicóloga negra, especialista em Políticas Públicas, Gestão e Serviços Sociais. Conselheira no XVI Plenário do CRPMG, membro da Coordenação Colegiada da Comissão de Orientação de Psicologia e Direitos Humanos e da Comissão de Orientação de Psicologia e Política de Assistência Social. 

2 Comentários


QUERO ME CADASTRAR
PARA RECEBER NOVIDADES!